Eduardo Braga Medeiros[1] e Paulo Dariva[2]
 
Sumário: 1 – Considerações Iniciais: Rompimento de Fronteiras Econômicas e a Formação de Blocos Regionais. 2 – A Intervenção do Estado na Ordem Econômica. 3 – A Constituição de 1988: A Regulação da Atividade Econômica e Financeira e a Idealização do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência.  4 – A Decisão na Esfera Administrativa e a sua Repercussão no Âmbito Judicial. 4.1 – O Tipo Penal do Crime de Cartel (Aspectos Gerais). 4.2 – O Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência – SBDC. 4.3 – A Repercussão da Decisão do CADE na Esfera Judicial Penal. 5 – Do Princípio da Intervenção Mínima do Direito Penal. 6 – Considerações Finais.
 
1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS: ROMPIMENTO DE FRONTEIRAS ECONÔMICAS E A FORMAÇÃO DE BLOCOS REGIONAIS
 
Atualmente muito se fala em globalização. É o tema para discussão no momento. Facilmente debatido. Apontada por muitos como objetivo a ser percorrido em busca da plenitude e da felicidade, a globalização é tida por alguns como grande mal à humanidade. Para Bauman, “a globalização tanto divide como une; divide enquanto une – e as causas da divisão são idênticas às que promovem a uniformidade do globo. Junto com as dimensões planetárias dos negócios, das finanças, do comércio e do fluxo de informação, é colocado em movimento um processo ‘localizador’ de fixação no espaço.”[3]
 
São perceptíveis os traços de integração econômico-cultural de correntes do processo de globalização, como o encurtamento das distâncias, com a redução dos custos dos meios de transporte e desenvolvimento dos meios de comunicação, e a formação de blocos de mercado regionais, caso do MERCOSUL e da hoje denominada UNIÃO EUROPÉIA. Em decorrência desse quadro da economia surgem novos princípios econômicos.
 
2 – A INTERVENÇÃO DO ESTADO NA ORDEM ECONÔMICA
 
A (re)configuração do Estado nos séculos XVII e XVIII outorgou à sociedade poder legítimo para o exercício de sua participação no processo decisório da nação. Da Revolução Francesa surge a idéia de Estado Liberal, a qual predomina durante o curso do século XIX. Esse movimento cindiu a atividade econômica e atividade política do Estado, caracterizada, sobretudo, pelas restrições e limitações de atuação estatal[4], difundindo-se até o domínio econômico.
 
O Estado moderno é constituído sob traços do ideal bipartite de distribuição de funções entre a autoridade pública e a iniciativa privada, sendo reservado a esta última o exercício da atividade econômica. Acrescenta Alexandre Parodi que
 
A concepção liberal do Estado nasceu de uma dupla influência: de um lado, o individualismo filosófico e político do século XVIII e da Revolução Francesa, que considerava como um dos objetivos essenciais do regime estatal a proteção de certos direitos individuais contra os abusos de autoridade; de outro lado, o liberalismo econômico dos fisiocratas e de ADAM SMITH, segundo o qual a intervenção da coletividade não deveria falsear o jogo das leis econômicas, benfazejas por si, pois que esta coletividade era imprópria para exercer funções de ordem econômica.[5]
 
O modelo Liberal adotado apresentou algumas imperfeições. Assinala Eros Roberto Grau que seriam o surgimento dos monopólios, no advento de cíclicas crises econômicas e o exacerbamento do conflito capital versus trabalho, associadas à incapacidade do Estado de auto-regular os mercados, geraram uma nova função estatal.[6]
 
Esta nova função do Estado, de regulação do mercado, concebida em razão da soma das imperfeições liberais com a insuficiência de auto-regulação estatal, derrubou a idéia de liberdade, igualdade e fraternidade, pois em contraposição com o espírito de poder econômico que começara a se fixar.
 
O direito econômico/concorrencial, cada vez mais presente em mercados comuns, tem assumido o importante papel de disciplinar o mercado, impondo as diretrizes ao autocontrole econômico, indispensável à concepção de liberdade efetiva de circulação de produtos nas grandes comunidades.[7]
 
Ao final do século XX são substanciais as críticas impostas ao Estado, centradas na idéia de ineficiência, morosidade, burocracia e desperdício de recursos públicos. Traço marcante e muito debatido é a corrupção. Este, sem dúvida, é o período no qual se verifica o maior enfraquecimento estatal. Luis Roberto Barroso preleciona a “perda do charme” estatal, passando o Estado a ser encarado com ceticismo, no que diz com seu potencial enquanto instrumento a serviço do progresso e de transformação da sociedade.[8]
 
3 – A CONSTITUIÇÃO DE 1988: A REGULAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E FINANCEIRA E A IDEALIZAÇÃO DO SISTEMA BRASILEIRO DE DEFESA DA CONCORRÊNCIA
 
O Brasil não pode ser excluído de tal situação. Pelo sistema implantado com a Constituição da República de 1988, decorrente de uma série de movimentos datados do século XX, para muitos autores[9], é possível classificar, através de diferentes critérios, as formas de intervenção do Estado no domínio econômico.
 
Nesse sentido é a também a lição de José Afonso da Silva, para quem
 
o Estado pode ser um agente econômico e um agente disciplinador da economia. Pode-se manter, em face da atual Constituição, a mesma distinção que surtia das anteriores, qual seja a de que ela reconhece duas formas de ingerência do Estado na ordem econômica: a participação e a intervenção. Ambas constituem instrumentos pelos quais o Poder Público ordena, coordena e atua a observância dos princípios da ordem econômica tendo em vista a realização de seus fundamentos e de seu fim (…).[10]
 
O que se deve reconhecer é a inegável relevância do Direito Econômico para o desenvolvimento das relações de mercado. Tal situação é comprovada a partir da análise do título VI – capítulo I do texto constitucional, destinado especificamente à ordem econômica e financeira, nos dispositivos compreendidos entre os artigos 170 e 181, que elencam princípios gerais da atividade econômica, cujo livre exercício é assegurado no corpo do mesmo diploma legal.
 
Ao final da década de 1980, no Brasil, coincidentemente período no qual foi promulgada a Constituição da República, hoje vigente, ocorreu o fortalecimento do mercado interno estritamente vinculado à liberalização comercial, evidenciando a necessidade de regulação e defesa da concorrência.
 
Com isso, foi promulgada a Lei nº 8.894/94, denominada Lei Antitruste, com o evidente objetivo de inibir infrações à ordem econômica, através de dispositivos que visam a coibir, dentre outras coisas, a prática de atos anticoncorrenciais, além do fortalecimento de órgãos controladores da concorrência, como por exemplo, o CADE, existente desde a década de 1960.
 
A Lei nº 8.884/94 criou o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, concebido, sobretudo, para efetuar a regulação da livre-concorrência e a liberdade de mercado no Brasil, com o objetivo principal de promover uma economia competitiva através da prevenção e da repressão às ações que visem a prejudicar a concorrência.[11]
 
A Estrutura do Sistema Brasileiro é composta por um ente judicante (CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica) que se vale de dois órgãos auxiliares (SEAE – Secretaria de Acompanhamento Econômico e SDE – Secretaria de Direito Econômico). O principal objetivo desse sistema[12] é promover a economia, de tal modo que apresente traços de competitividade sem limitações ou questões prejudiciais para a concorrência.
 
O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), conforme já mencionado, é uma entidade dotada de judicância, criada por meio da Lei nº 4.137/62. Em decorrência da Lei nº 8.884/94, passou a ter sede e foro no Distrito Federal e a ser vinculado ao Ministério da Justiça. Seu papel precípuo é regulamentar a livre-concorrência, esclarecendo a população acerca das modalidades de infração à ordem econômica e, ainda, em virtude de seu caráter judicante, decidir questões relativas a essas infrações.
 
A Secretaria de Direito Econômico, também vinculada ao Ministério da Justiça, tem função investigativa no tocante aos indícios de autoria ligados às infrações à ordem econômica.[13] Mas sua função não se exaure aí. Apura também a materialidade dessas infrações. É dirigida por um secretário, via de regra, um brasileiro de notório saber jurídico/econômico e ilibada reputação, indicado pelo Ministro de Estado da Justiça, chancelada pelo Presidente da República.
 
Compõe, ainda, o chamado SBDC (Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência), a Secretaria de Acompanhamento Econômico.[14] Órgão consultivo, de assessoramento técnico, especializado, vinculado ao Ministério da Fazenda, cuja função é a emissão de pareceres técnicos para subsidiar as decisões do CADE. No âmbito do Poder Executivo, é o principal órgão encarregado de acompanhar os preços da economia, subsidiar decisões em matérias de reajustes e revisões de tarifas públicas e ainda apreciar atos de concentração entre as empresas, reprimindo condutas anticoncorrenciais.
 
Por meio do Decreto nº 6.102, de 31 de outubro de 2006, em seu artigo 11, suas competências foram recentemente alteradas, em virtude de reestruturação a que foi submetido todo o Ministério da Fazenda, passando a ter como funções:
 
I – delinear, coordenar e executar as ações do Ministério, no tocante à gestão das políticas de regulação de mercados, de concorrência e de defesa da ordem econômica, de forma a promover a eficiência, o bem-estar do consumidor e o desenvolvimento econômico;
II – assegurar a defesa da ordem econômica, em articulação com os demais órgãos do Governo encarregados de garantir a defesa da concorrência:
a) atuando no controle de estruturas de mercado, emitindo, pareceres econômicos relativos a atos de concentração no contexto da Lei n° 8.884, de 11 de junho de 1994;
b) procedendo a análises econômicas de práticas ou condutas limitadoras da concorrência, instruindo procedimentos no contexto da Lei nº 8 884, de 1994; e
c) realizando, em face de indícios de infração da ordem econômica, investigações de atos ou condutas limitadores da concorrência no contexto da Lei nº 9.021, de 30 de março de 1995, e da Lei nº 10.149, de 21 de dezembro de 2000;
III – acompanhar a implantação dos modelos de regulação e gestão desenvolvidos pelas agências reguladoras, pelos ministérios setoriais e pelos demais órgãos afins, opinando, a seu juízo ou quando provocada, dentre outros aspectos, acerca:
a) dos reajustes e as revisões de tarifas de serviços públicos e de preços públicos;
b) dos processos licitatórios que envolvam a privatização de empresas pertencentes à União, com o objetivo de garantir condições máximas de concorrência, analisando as regras de fixação das tarifas de serviços públicos e preços públicos iniciais, bem como as fórmulas paramétricas de reajustes e as condicionantes que afetam os processos de revisão; e
c) da evolução dos mercados, especialmente no caso de serviços públicos sujeitos aos processos de privatização e de descentralização administrativa, para recomendar a adoção de medidas que estimulem a concorrência e a eficiência econômica na produção dos bens e na prestação dos serviços;
IV – autorizar e fiscalizar, salvo hipótese de atribuição de competência a outro órgão ou entidade, as atividades de distribuição gratuita de prêmios, a título de propaganda, mediante sorteio, vale-brinde, concurso ou operação assemelhada, e de captação de poupança popular, nos termos da Lei nº 5.768, de 20 de dezembro de 1971;
V – autorizar, acompanhar, monitorar e fiscalizar as atividades de que tratam os decretos-leis nº 6.259, de 10 de fevereiro de 1944, e nº 204, de 27 de fevereiro de 1967;
VI – autorizar e fiscalizar as atividades de que trata o art. 14 da lei nº 7.291, de 19 de dezembro de 1984;
VII – promover o desenvolvimento econômico e o funcionamento adequado do mercado, nos setores agrícola, industrial, de comércio e serviços e de infra-estrutura:
a) acompanhando e analisando a evolução de variáveis de mercado relativas a produtos, ou a grupo de produtos;
b) acompanhando e analisando a execução da política nacional de tarifas de importação e exportação, interagindo com órgãos envolvidos com a política de comércio exterior;
c) adotando, quando cabível, medidas normativas sobre condições de concorrência para assegurar a livre concorrência na produção, comercialização e distribuição de bens e serviços;
d) compatibilizando as práticas internas de defesa da concorrência e de defesa comercial com as práticas internacionais, visando à integração econômica e à consolidação dos blocos econômicos regionais;
e) avaliando e se manifestando expressamente acerca dos atos e instrumentos legais que afetem as condições de concorrência e eficiência na prestação de serviços regulados e de livre comercialização, produção e distribuição de bens e serviços.
IX – Formular representação perante o órgão competente, para que este, querendo, adote as medidas legais cabíveis, sempre que for identificada norma ilegal e/ou inconstitucional que tenha caráter anticonpetitivel;
X – desenvolver os instrumentos necessários à execução das atribuições mencionadas nos incisos I a VIII deste artigo;
XI – promover a articulação com órgãos públicos, setor privado e entidades não-governamentais, também envolvidos nas atribuições mencionadas nos incisos I a VIII deste artigo.[15]
 
Como já referido, o Sistema visa a promover uma economia competitiva, prevenindo e reprimindo ações que prejudiquem a concorrência. Eventuais suspeitas de condutas que, por ventura, violem a ordem econômica, podem ser encaminhadas à Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça. A Secretaria deflagra averiguações preliminares, e, se for o caso, instaura processo administrativo, fase na qual são colhidos elementos fáticos e probatórios e instruído o processo instaurado em razão das condutas denunciadas.[16]
 
4 – A DECISÃO NA ESFERA ADMINISTRATIVA E A SUA REPERCUSSÃO NO ÂMBITO JUDICIAL
 
Tem-se discutido muito acerca de haver ou não independência entre as esferas administrativa e penal, não apenas no que diz respeito aos crimes contra a ordem tributária, que é onde a discussão é mais saliente, mas também nos crimes econômicos como um todo.
 
Segundo João Augusto Prado da Silveira Gameiro e Osvaldo Gianotti Antoneli, no que diz respeito ao presente tema, mas no enfoque dos crimes contra a ordem tributária,
 
podem ser distinguidos dois grandes grupos antagônicos: para alguns, as instâncias administrativa e penal são totalmente independentes e autônomas, não havendo necessidade de se esperar uma decisão final da autoridade administrativa para que se possa iniciar a ação penal; outros postulam que o início de um processo criminal só é possível uma vez que não subsista qualquer discussão no âmbito administrativo quanto à existência e ao valor do tributo, sem que esteja, portanto, pendente qualquer dúvida tributária.[17]
 
A jurisprudência tem se inclinado, na maior parte das situações, para o reconhecimento da independência das esferas administrativa e penal, acarretando, via de conseqüência, a não vinculação do Poder Judiciário a uma decisão administrativa. Esse é, aliás, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, senão vejamos:
 
RECURSO ESPECIAL. CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO. ART. 17 DA LEI N.º 7.492/86. CONCLUSÃO DA ESFERA ADMINISTRATIVA PELA ATIPICIDADE DA CONDUTA. ELEMENTO DE PROVA. CABIMENTO. ABSOLVIÇÃO FUNDADA EM OUTROS ELEMENTOS DOS AUTOS. INDEPENDÊNCIA DAS ESFERAS.
1. A jurisprudência sedimentada nesta Corte Superior determina que as instâncias administrativa e penal são independentes, não estando o Judiciário vinculado às decisões tomadas por órgãos da Administração Pública.
2. Contudo, nada impede que se considere como elemento de convicção o julgamento proferido pelo Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional que, em consonância com o conjunto probatório dos autos, concluiu pela inexistência de provas que pudessem amparar uma decreto condenatório.
3. Da análise da decisão administrativa, do interrogatório do acusado e das provas testemunhais, entendeu a Corte a quo pela inexistência de provas do fato delituoso, e não apenas em face da decisão administrativa, como defende o Recorrente.
4. Recurso desprovido.[18]
 
Cumpre-nos, no entanto, analisar se a discussão acerca da independência ou não das esferas administrativa e judicial é de importância relevante também no que diz respeito aos crimes econômicos, mais especificamente quanto ao chamado delito de formação de cartel, do qual ora nos ocupamos.
 
4.1 – O TIPO PENAL DO CRIME DE CARTEL (ASPECTOS GERAIS)
 
Eduardo Reale Ferrari, citando Manoel Pedro Pimentel, afirma que, numa tentativa de barrar o abuso do poder econômico,
 
o fizeram através de leis imperfeitamente redigidas e defeituosamente concebidas que demandavam correções tão logo publicadas. (…) Não raro se constatou que, editada uma lei, tornava-se necessário interpretá-la por meio de outras normas complementares, sobrevindas sob as formas de regulamentos, instruções, avisos e portarias.[19]
 
Os tipos penais econômicos, de uma forma geral, caracterizam-se por serem tipos penais abertos, imprecisos, com elementos normativos que, muitas vezes, temos que buscar a sua conceituação em outros ramos do Direito ou até fora dele.
 
O Direito Penal Econômico apresenta uma gama imensa de normas penais em branco, ou seja, normas abertas, que dependem de complementação, normalmente, por normas de hierarquia inferior às leis, remetendo, assim, à Administração Pública, a definição do que seja lícito e do que seja ilícito, a exemplo dos crimes em que certa conduta, para ser crime, deve estar em desacordo com as normas editadas pelo Banco Central do Brasil – BACEN.
 
Conforme refere Manuel A. Banto Vásquez,
 
Una primera cuestión que se debe dejar en claro, antes de continuar, es la referente al contenido de los tipos penales. Como es conocido, estos tienen “elementos descriptivos” y “elementos normativos”. Los “elementos descriptivos” son los que expresan una realidad tangible que puede ser captada por los órganos de nuestros sentidos (…). En cambio, los “elementos normativos” precisan de una valoración del intérprete, es decir, acudir a otras normas penales o extra-penales u otras fuentes para comprender cuándo se está ante dicho elemento.[20]
 
Da mesma forma, é da lição de Antônio Corrêa que podemos extrair a definição de normais penais em branco:
 
Algumas normas são chamadas de “em branco” porque, embora descrito o seu tipo (preceito) na lei penal, é ele incompleto. A descrição de circunstâncias de fato nestes tipos tem de ser completada por outro dispositivo legal, que esteja em vigor no momento da imputação ou que venha a disciplinar os casos futuros para igualmente permitir imputações. (…) Em todo caso, vê-se que a idéia de norma penal em branco não exige seja esta preenchida ou completada por outra lei e admite que seja um regulamento, uma portaria ou mesmo outra lei (…).[21]
 
Nesse contexto, temos o art. 4° da Lei n° 8.137/90, que tipifica o crime de cartel, dispondo que é crime “abusar do poder econômico, dominando o mercado ou eliminando total ou parcialmente a concorrência”, mediante as condutas que o artigo descreve em seus incisos.
 
Temos, portanto, elementos normativos do tipo, que devem estar presentes para que haja uma adequação típica da conduta, ou seja, para que haja efetivamente crime de cartel, há que estar configurado o “abuso do poder econômico”, a “dominação do mercado” ou o “impedimento de desenvolvimento de empresas concorrentes”. Ou então caracterizada a expressão “valendo-se de posição dominante no mercado”, contida no inciso VII do art. 4° do diploma legal em questão.
 
É fácil perceber que tais elementos não são compreendidos de imediato, ou seja, há a necessidade, para que haja uma adequação típica, de verificação do que é dominação de mercado, por exemplo, ou do que é posição dominante. E após estabelecer essa conceituação é que se vai verificar se o caso concreto subsume-se à norma penal.
 
4.2 – O SISTEMA BRASILEIRO DE DEFESA DA CONCORRÊNCIA – SBDC
 
Consoante já tivemos a oportunidade de verificar, a estrutura do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência é composta por um ente judicante (CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica) que se vale de dois órgãos auxiliares (SEAE – Secretaria de Acompanhamento Econômico e SDE – Secretaria de Direito Econômico).
 
O Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE é, portanto, uma autarquia altamente especializada, competente para o julgamento dos processos administrativos que envolvem supostos cartéis. É um órgão técnico que vai analisar se todas essas situações ocorreram, é um órgão que tem condições de verificar as circunstâncias de mercado em que está inserido o fato supostamente criminoso.
 
Não obstante, é auxiliado pela Secretaria de Acompanhamento Econômico – SEAE e pela Secretaria de Direito Econômico – SDE, órgãos também especializados e com funções específicas, sendo aquela consultiva e esta investigativa e instrutória.
 
Ora, esse sistema administrativo é técnico, altamente especializado, cuja função reside especificamente, como já referido, na averiguação de possíveis condutas de formação de cartel. É competente, portanto, para analisar as situações fáticas de mercado e verificar a existência ou não dos pressupostos fáticos do delito de cartel.
 
4.3 – A REPERCUSSÃO DA DECISÃO DO CADE NA ESFERA JUDICIAL PENAL
 
Tem em vista a elevada tecnicidade e a existência de um verdadeiro sistema para averiguação da ocorrência de condutas que representariam formação de cartel, por meio de órgãos que têm plenas condições de analisar as situações específicas de mercado, bem como a relação existente entre as diversas empresas supostamente envolvidas, havendo uma decisão absolutória no CADE, de mérito, ou seja, que não tenha sido proferida por insuficiência de provas, por exemplo, mas que conclua pela não ocorrência de algum desses elementos normativos do tipo, cabe questionar se é possível que, ainda assim, o suposto agente venha a ser condenado penalmente.
 
Como dito, o tipo penal que define a conduta caracterizadora do delito de cartel é um tipo aberto, que remete o intérprete a outros ramos do Direito, ou até para fora dele, para verificar o que de fato representariam as condutas nele descritas. Ou seja, um suposto fato, para configurar-se criminoso, no que concerne ao crime de cartel, deve estar completamente subsumido nas hipóteses elencadas pelo art. 4º da Lei nº 8.137/90, como, por exemplo, a configuração de um “abuso do poder econômico” ou de uma “dominação de mercado”.
 
Ora, o órgão administrativo, técnico e especializado, ao analisar o mercado em que se inserem os supostos fatos criminosos, é quem detém a competência e a capacidade para verificar se, naquele caso concreto, os fatos inseridos em determinado contexto de mercado subsumem-se ou não nos elementos normativos descritos no tipo penal que define o delito de cartel.
 
Apesar da grande sapiência de diversos magistrados brasileiros, que engalanam o Poder Judiciário pátrio, lúcida é afirmação de Ferreira de Souza:
 
Os juízes, ainda os mais cultos, não vivem a vida do tráfico mercantil, não conhecem de perto as necessidades do comércio e da indústria, não estão normalmente habilitados a distinguir, na fixação dos preços, os diversos elementos que para eles concorrem. A discriminação exige técnica especial, penetração própria, jogo de fatos diversos e às vezes opostos aos com que homem do foro lida diariamente.[22]
 
Assim, uma decisão absolutória, de mérito, proferida pelo CADE, define a não ocorrência do crime de cartel, por ausência de seus pressupostos fáticos, ou seja, ausentes as condições exigidas pelo tipo penal correspondente, não sendo possível a persecução penal por este fato.
 
A conduta analisada, portanto, é conduta atípica, irrelevante para o Direito Penal, sendo caso de rejeição de eventual denúncia oferecida pelo órgão acusador, na esteira do disposto no art. 43, I, do Código de Processo Penal.[23] Se o CADE concluiu inexistir cartel, a conduta é atípica, não havendo que se falar em ação delituosa.
 
No entanto, a decisão condenatória do CADE, por outro lado, não teria o condão de automaticamente condenar o sujeito na esfera penal, mas constituir-se-á em prova robusta para a ação penal. Ocorre que, em se tratando de ação penal, que coloca em cheque a liberdade de ir e vir do indivíduo, acarretando a aplicação dos diversos direitos e garantias penais constitucionais, há outros elementos a serem analisados no caso concreto, a exemplo da prescrição da pretensão punitiva, de eventuais causas de exclusão da ilicitude ou de dirimentes de culpabilidade.
 
 5 – DO PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA DO DIREITO PENAL
 
A despeito das considerações acima expostas, cabe analisar, mais especificamente, se, em razão de todo o aparelhamento estatal, conforme detalhado acima, o direito administrativo não cumpriria adequadamente o papel de reprimir e evitar a ocorrência de delitos de formação de cartéis.
 
O princípio da intervenção mínima preconiza que, sendo a resposta penal do Estado um meio extremamente violento, podendo acarretar, de forma muito grave, a restrição da liberdade do indivíduo a ela submetido, ou de seus direitos, somente se deve recorrer a tal manifestação do poder punitivo estatal quando todas as demais esferas do Direito não obtiverem êxito na proteção do bem jurídico. Daí a idéia de que o Direito Penal constitui a ultima ratio da intervenção estatal.
 
Tal princípio, conforme lição de Nilo Batista, “não está expressamente inscrito no texto constitucional […] nem no código penal, integrando a política criminal; não obstante, impõe-se ele ao legislador e ao intérprete da lei.”[24]
 Dessa forma, fundamentando-se
 
no pensamento de que o direito penal só se legitima quando insuficiente a tutela de outros ramos do ordenamento jurídico, o princípio da intervenção mínima crê na subsidiariedade e na fragmentariedade da interferência criminal, significando impossibilidade de sancionamento a todas as condutas lesivas, a aplicar-se apenas àquelas mais gravosas socialmente.[25]
 
O princípio da intervenção mínima, portanto, inadmite a ingerência de sanções penais quando não forem estritamente necessárias à proteção do bem jurídico, assim entendido como a atuação não exitosa ou insuficiente de outros ramos do Direito. Não obstante, decorre do referido princípio que, uma vez “atingida a finalidade da sanção, deve cessar imediatamente o poder punitivo do Estado.”[26]
 
Nesse contexto, em nosso ordenamento jurídico, temos um direito administrativo sancionador, que não difere, em essência, do próprio direito penal, eis que integra o ius puniendi estatal.
 
Nesse sentido é a afirmação de Miguel Reale Júnior, entendendo que
 
por não haver uma diferença de natureza substancial entre ilícito penal e administrativo retributivo, conforme preleciona Daniele Propato, para a qual as sanções administrativas retributivas são idênticas em suas funções às penais (…) a escolha pela qualificação de uma conduta como ilícito penal ou administrativo não é senão de Política Administrativa, tendo em vista, primordialmente, a busca de maior eficácia social.[27]
 
Da mesma forma é o entendimento de Miguel Bajo e Silvina Bacigalupo, para quem “la diferencia entre delito y la infracción administrativa, es decir, entre ilícito penal y el ilícito administrativo, sólo puede encontrarse em consideraciones formales.”[28]
 
Ora, consoante já referido, o Direito Penal somente deve atuar quando todos os demais ramos do Direito falharam em seu objetivo de proteção do bem jurídico. Considerando-se que o Direito Administrativo Sancionador protege de forma suficiente o respectivo bem jurídico, pela imposição de pesadas multas e restrições, inclusive de contratação com o Poder Público, temos que a intervenção do Direito Penal no combate de supostos cartéis é ilegítima, em homenagem ao princípio da intervenção mínima.
 
 6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
 
Órgãos de defesa da concorrência visam a promover justamente a cultura da concorrência. Este é o papel pedagógico das autoridades que pregam a política antitruste na disseminação do exercício ético da atividade econômica.  Em que pese o caráter técnico das decisões proferidas na esfera administrativa, e respeitado o entendimento assinalado pelos Tribunais brasileiros, no que diz à independência das esferas administrativa e judicial, há que se atentar para questão pouco debatida consistente nos reflexos jurisdicionais da decisão exarada na esfera administrativa.
 
Ressalvada, portanto, a independência das esferas, as decisões proferidas em sede administrativa, quando demonstram a inocorrência de infração à ordem econômica, devem servir como pressuposto de análise hábil a ensejar a imediata absolvição na esfera judicial.
 
Tendo em vista a identidade entre o objeto da investigação em ambas as esferas, as conclusões do SBDC, no sentido da inexistência de qualquer conduta contra a concorrência, devem ser observadas, sob pena de flagrante contradição e excesso do poder punitivo. Logo, se o órgão/sistema competente para averiguação de infrações à ordem econômica entender lícita a conduta do investigado, caracteriza-se como atípica a mesma. Isso porque se trata de norma penal, cuja complementação advém da esfera administrativa.
 
Convém frisar que, se considerada a unicidade do ilícito, não é adequado que sejam proferidas decisões distintas acerca de idêntica conduta, investigada em ambas as esferas. Assim, inegável a anomalia criada em razão de eventual condenação criminal, quando estiverem presentes os pressupostos de absolvição na esfera administrativa.
 
Há que se destacar, ainda, que o abuso do poder econômico, situação esta na qual se verifica a formação do cartel, por exemplo, está na categoria dos conceitos jurídicos indeterminados[29], tendo em vista que não se pode chegar a tal conceituação apenas por intermédio de dados conjunturais, obtidos a partir de análise mercadológica. Ao contrário, necessita-se de uma conjugação de uma série de fatores, a partir dos quais poderá se comprovar o abuso do poder econômico, fato este que apenas se demonstra pela apreciação in concreto.
 
Frise-se, por fim, que, a despeito das considerações já expostas, em razão da existência de um complexo aparelhamento estatal, sistema composto por órgãos técnicos e altamente especializados na investigação, prevenção e repressão de condutas de formação de cartéis, e em vista das formas com que o Direito Administrativo Sancionador prevê medidas de repressão e prevenção de tais condutas, tem-se que a intervenção do Direito Penal no aspecto mostra-se ilegítima, eis que suficientemente protegido o bem jurídico respectivo.
 
O Direito Penal deve ser sempre a ultima ratio, ou seja, somente deve intervir quando nenhum outro ramo do Direito obteve êxito na proteção do bem jurídico em questão, situação esta que não se mostra presente em casos de formação de cartéis. Somente assim se estará obedecendo ao princípio da intervenção mínima do Direito Penal e aos ditames de nossa Constituição Federal.
 
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MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1996.
SALOMÃO, Calixto Filho. Direito Concorrencial e as Estruturas de Mercado. São Paulo: ED.Malheiros, 1998.
SAMPAIO, Eduardo. As Dificuldades e a Praticidade na Aplicação da Legislação de Defesa da Concorrência. in” REALE, Miguel et. al. (coord.), Experiências do Direito. Campinas: Millennium, 2004.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2006.
VÁSQUEZ, Manuel A. Abanto. El Principio de <certeza> en las leyes penales en blanco – Especial referencia a los delitos económicos, Revista Peruana de Ciencias Penales, Año V, nº 9.
VENÂNCIO FILHO, Alberto. A Intervenção do Estado no Domínio Econômico. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.
 
 
NOTAS:

[1] Advogado, bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, especialista em Direito do Estado pelo Centro Universitário Ritter dos Reis e especializando em Direito Penal Empresarial pelo Programa de Pós-Graduação Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

[2] Advogado criminalista, bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especializando em Direito Penal Empresarial pelo Programa de Pós-Graduação Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, membro associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM e à Associação dos Advogados Criminalistas do Rio Grande do Sul – ACRIERGS. Integra o Escritório Weinmann de Advocacia.

[3] BAUMAN, Zygmunt. Globalização e conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. p. 08.

[4] VENÂNCIO FILHO, Alberto. A Intervenção do Estado no Domínio Econômico. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 3.

[5] PARODI, Alexandre apud VENÂNCIO FILHO, Alberto. A Intervenção do Estado no Domínio Econômico. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p.5.

[6]. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 14.

[7] SALOMÃO, Calixto Filho. Direito Concorrencial e as Estruturas de Mercado. São Paulo: ED.Malheiros, 1998. p.11.

[8] BARROSO, Luis Roberto. Constituição e ordem econômica e agências reguladoras. Revista eletrônica de direito administrativo econômico, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, n. 1, fev, 2005, p. 12.

[9] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p.365.

[10] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 804.

[11] FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu. Lições de Direito Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 258.

[12] Idem,ibidem.

[13] http://www.mj.gov.br/SDE/processos.asp?c=x. Acesso em 05/08/2007.

[14] FIGUEIREDO, Leonardo op cit. p. 265.

[16] FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu. op cit p. 258.

[17] GAMEIRO, João Augusto Prado da Silveira; ANTONELI, Osvaldo Gianotti. Direito Penal Tributário: proteção ou agressão? “in” REALE, Miguel et. al. (coord.), Experiências do Direito. Campinas: Millennium, 2004, p. 418-419.

[18] Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial nº 644272 / RJ, Quinta Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 06.06.2006.

[19] PIMENTEL apud FERRARI, Eduardo Reale. Legislação Penal Antitruste: Direito Penal Econômico e sua Acepção Constitucional. in” REALE, Miguel et. al. (coord.), Experiências do Direito. Campinas: Millennium, 2004, p. 283.

[20] VÁSQUEZ, Manuel A. Abanto. El Principio de <certeza> en las leyes penales en blanco – Especial referencia a los delitos económicos, Revista Peruana de Ciencias Penales, Año V, nº 9, p.17.

[21] CORRÊA, Antonio. Dos Crimes Contra a Ordem Tributária (Comentários à Lei n. 8.137, de 27-12-1990, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 45.

[22] SOUZA apud DUVAL, Hermano. Concorrência Desleal, São Paulo: Saraiva, 1976, p.335-336.

[23] Código de Processo Penal. Art. 43. A denúncia ou queixa será rejeitada quando: I – o fato narrado evidentemente não constituir crime.

[24] BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 85.

[25] FERRARI, Eduardo Reale. Medidas de Segurança e Direito Penal no Estado Democrático de Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 107-108.

[26] GOMES, Luiz Flávio. Medidas de Segurança e Seus Limites. Revista de Ciências Criminais, ano 1, n. 2, p. 64-72, abr./jun. 1993, p.69.

[27] REALE JÚNIOR apud SAMPAIO, Eduardo. As Dificuldades e a Praticidade na Aplicação da Legislação de Defesa da Concorrência. in” REALE, Miguel et. al. (coord.), Experiências do Direito. Campinas: Millennium, 2004, p. 178.

[28] BAJO, Miguel; BACIGALUPO, Silvina; apud SAMPAIO, Eduardo, op. cit., p. 179.

[29] BRUNA, Sérgio Varella. O Poder Econômico e a Conceituação do Abuso em Seu Exercício .SãoPaulo: Revista dos Tribunais, 2001.p.148.