O Plenário iniciou julgamento de recurso ordinário em habeas corpus no qual se discute se a conduta de não recolhimento de ICMS próprio, regularmente escriturado e declarado pelo contribuinte, enquadra-se no tipo penal do art. 2º, II, da Lei 8.137/1990, que define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá outras providências.
Na situação dos autos, sócios e administradores de uma empresa declararam operações de venda ao Fisco, mas deixaram de recolher o ICMS relativamente a diversos períodos. Denunciados pela prática do delito previsto no art. 2º, II, da Lei 8.137/1990, o juízo de primeira instância os absolveu sumariamente por considerar a conduta atípica. Em sede de apelação, o tribunal de justiça local afastou a tese da atipicidade e determinou o regular prosseguimento do processo.
Ato contínuo, a defesa impetrou habeas corpus perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ) (HC 399.109). Naquela Corte, a Terceira Seção, por maioria, asseverou ser inviável a absolvição sumária, notadamente quando a denúncia descreve fato que contém a necessária adequação típica e não há excludentes de ilicitude. Salientou-se que eventual dúvida quanto ao dolo de se apropriar deverá ser esclarecida com a instrução criminal. Daí a interposição do presente recurso ordinário, no qual requer seja declarada a ilegalidade do acórdão do tribunal de justiça, com o objetivo de restabelecer a sentença que absolveu sumariamente os denunciados, em virtude da atipicidade formal da conduta que lhes foi imputada.
O ministro Roberto Barroso (relator) negou provimento ao recurso, no que foi acompanhado pelos ministros Alexandre de Moraes, Luiz Fux, Edson Fachin, Rosa Weber e Cármen Lúcia.
De início, o relator estabeleceu três premissas, que reputou importantes no equacionamento da matéria: (i) o Direito Penal deve ser sério, igualitário e moderado; (ii) o pagamento de tributos é dever fundamental de todo cidadão, na medida em que ocorra o fato gerador e ele exiba capacidade contributiva; e (iii) o mero inadimplemento tributário não deve ser tido como fato típico criminal, para que seja reconhecida a tipicidade de determinada conduta impende haver um nível de reprovabilidade especial que justifique o tratamento mais gravoso.
Explicitou que o sujeito ativo do crime é o sujeito passivo da obrigação, que, na hipótese do ICMS próprio, é o comerciante. O objeto do delito é o valor do tributo. No caso, a quantia transferida pelo consumidor ao comerciante. O ponto central do dispositivo em apreço é a utilização dos termos “descontado” e “cobrado”. Tributo descontado, não há dúvidas, refere-se aos tributos diretos. Já a expressão “cobrado” abarcaria o contribuinte nos tributos indiretos. Portanto, cobrado significa o tributo que é acrescido ao preço da mercadoria, pago pelo consumidor — contribuinte de fato — ao comerciante, que deve recolhê-lo ao Fisco. O consumidor paga mais caro para que o comerciante recolha o tributo à Fazenda estadual.
O ministro salientou que o valor do ICMS cobrado em cada operação não integra o patrimônio do comerciante, que é depositário desse ingresso de caixa. Entendimento coerente com o decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no RE 574.706 (Tema 69 da repercussão geral). Oportunidade na qual assentado que o ICMS não integra o patrimônio do sujeito passivo e, consequentemente, não compõe a base de cálculo do PIS e da Cofins.
Dessa maneira, a conduta não equivale a mero inadimplemento tributário, e sim à apropriação indébita tributária. A censurabilidade está em tomar para si valor que não lhe pertence. Para caracterizar o tipo penal, a conduta é composta da cobrança do consumidor e do não recolhimento ao Fisco.
Segundo o relator, além da interpretação textual do preceito, a interpretação histórica também conduz à tipicidade da conduta. Na redação apresentada em substitutivo ao projeto de lei original, tratava-se, em incisos separados, a hipótese de retenção e não recolhimento e a hipótese de cobrança no preço e não recolhimento. No texto final aprovado, o dispositivo foi compactado sem a modificação do sentido da norma. Fundiu os dois incisos em um só e dispôs os termos “descontado”, para o tributo retido na fonte, e “cobrado”, para o incluído no preço.
De igual modo, a análise do direito comparado reforça essa compreensão. Em outras partes do mundo, os delitos tributários inclusive são punidos de forma mais severa. O relator lembrou que a Primeira Turma do STF concedeu pedido de extradição fundado em tipo penal análogo (Ext 1.139) e que o STF já reconheceu a constitucionalidade do tipo penal em debate (ARE 999.425, Tema 937 da repercussão geral).
Ao versar sobre a interpretação teleológica, o ministro observou que são financiados, com a arrecadação de tributos, direitos fundamentais, serviços públicos, consecução de objetivos da República. No país, o ICMS é o tributo mais sonegado e a principal fonte de receita própria dos estados-membros da Federação. Logo, é inequívoco o impacto da falta de recolhimento intencional e reiterado do ICMS sobre o erário. Considerar crime a apropriação indébita tributária produz impacto relevante sobre a arrecadação.
Também a livre iniciativa é afetada por essa conduta. Empresas que sistematicamente deixam de recolher o ICMS colocam-se em situação de vantagem competitiva em relação as que se comportam corretamente. No mercado de combustíveis, por exemplo, são capazes de alijar os concorrentes que cumprem suas obrigações.
O ministro esclareceu que a oscilação da jurisprudência do STJ afirmando a atipicidade da conduta adversada fez com que diversos contribuintes passassem a declarar os valores devidos, sem recolhê-los. Houve uma “migração” do crime de sonegação para o de apropriação indébita e não é isso que o direito deseja estimular.
No tocante às consequências do reconhecimento da tipicidade sobre os níveis de encarceramento no país, aduziu que é virtualmente impossível alguém ser efetivamente preso pelo delito de apropriação indébita tributária. A pena cominada é baixa, portanto, são cabíveis transação penal, suspensão condicional do processo e, em caso de condenação, substituição da pena privativa de liberdade por medidas restritivas de direito. Demais disso, é possível a extinção da punibilidade se o sonegador ou quem tenha se apropriado indevidamente do tributo quitar o que devido.
Assentada a possibilidade do delito em tese, o relator assinalou que o crime de apropriação indébita tributária não comporta a modalidade culposa. É imprescindível a demonstração do dolo e não será todo devedor de ICMS que cometerá o delito. O inadimplente eventual distingue-se do devedor contumaz, este faz da inadimplência tributária seu modus operandi.
O relator consignou que o dolo da apropriação deve ser apurado na instrução criminal, pelo juiz natural da causa, a partir de circunstâncias objetivas e factuais, tais como a inadimplência reiterada, a venda de produtos abaixo do preço de custo, a criação de obstáculos à fiscalização, a utilização de “laranjas”, a falta de tentativa de regularização de situação fiscal, o encerramento irregular de atividades com aberturas de outras empresas.
Mantida a decisão do STJ, o ministro Roberto Barroso propôs a seguinte tese: “O contribuinte que deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei 8.137/1990, desde que aja com intenção de apropriação do valor do tributo a ser apurada a partir de circunstâncias objetivas factuais.”
Por seu turno, o ministro Alexandre de Moraes enfatizou que os tipos da Lei 8.137/1990 não se confundem com prisão civil por dívida. Para ele, o delito em debate consiste em apropriação dolosa. Acrescentou ter sido estabelecido pelo legislador que o sujeito ativo do crime é o sujeito passivo da obrigação tributária. Diferentemente do que alegado pela defesa, não teria restringido o tipo à hipótese de substituição tributária. Concluiu ser possível a continuidade da ação penal nos termos em que julgado pelo tribunal de justiça.
Segundo o ministro Luiz Fux, o preceito penal dispõe crime contra a ordem tributária, e não delito de apropriação indébita tributária. Evidentemente, exige-se o dolo, o animus de não pagar o tributo e enriquecer às custas do Estado. Indicou que, para caracterização do delito, a denúncia deve narrar circunstanciadamente a efetiva cobrança ou desconto do tributo do preço final ao consumidor ou a redução do preço para finalidade ilícita, excluída do âmbito de incidência do tipo penal a criminalização da mera inadimplência isolada do contribuinte. Nessa inadimplência isolada do contribuinte, encaixar-se-iam os casos enumerados pelo relator.
O ministro Edson Fachin discorreu que o tipo penal versa crime próprio, cuja conduta é suscetível de realização pelo sujeito passivo da obrigação tributária, abrangidas as figuradas do contribuinte e do responsável tributário. O valor do tributo cobrado a título de ICMS não integra o patrimônio do contribuinte, que age com contornos semelhantes a de um depositário. Por coerência, a ausência de recolhimento não denota tão somente inadimplemento fiscal, mas também disposição de recurso de terceiro, a aproximar-se da espécie de apropriação tributária. No tocante ao ICMS, a conduta incrimina a ruptura, causada pelo contribuinte de direito, entre a atividade de tributação realizada pelo Fisco e o atingimento da riqueza concernente à capacidade contributiva do consumidor.
Por sua vez, a ministra Rosa Weber acentuou que a conduta eleita pelo legislador penal não exige, para sua perfectibilização, o emprego de fraude ou simulação pelo contribuinte, nem qualquer omissão.
Em divergência, o ministro Gilmar Mendes deu provimento ao recurso. No mesmo sentido, votaram os ministros Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio.
Para o ministro, deve ser imperiosamente levado em conta o dolo com a imprescindível consideração do elemento subjetivo especial do injusto em comento, qual seja, a vontade de se apropriar dos valores retidos, omitindo o cumprimento do dever tributário com a intenção de não os recolher. O dolo de não recolher o tributo, de maneira genérica, não seria suficiente para preencher o tipo subjetivo do referido dispositivo. É necessária a presença de uma vontade de apropriação fraudulenta dos valores do Fisco para materializar o elemento subjetivo especial do tipo em comento. Esse ânimo se manifesta pelo ardil de omitir e/ou alterar os valores devidos e se exclui com a devida declaração da espécie tributária junto aos órgãos de administração fiscal. Na situação dos autos, inexiste imputação de fraude.
Em cotejo analítico de proporcionalidade entre os valores constitucionais da liberdade individual e da própria ordem jurídica tributária, na qualidade de bem jurídico tutelado pelo tipo em questão, a intervenção criminal somente se justifica na medida em que houver alguma forma de fraude por parte do agente. Isso, porque a fraude é objeto da norma penal, e não a dívida. A interpretação constitucional do dispositivo deve considerar o ânimo de fraude, sob pena de fomentar-se política criminal arrecadatória.
O ministro salientou que o instrumento hermenêutico de analogia não pode ser utilizado para suprir a necessária demonstração da vontade ardilosa de se apropriar dos valores devidos. Quando não é suficientemente levada a cabo, pela acusação, a clara demonstração do liame subjetivo entre autor e fato — como ocorre na espécie —, estar-se-á diante de verdadeira imputação criminal pelo mero inadimplemento de dívida fiscal.
Ponderou que a criminalização de mera dívida se equipara à prisão civil e fere de forma grave tanto a Constituição Federal (CF) quanto o Pacto de San José da Corta Rica. Na falta de demonstração do elemento determinante do tipo, é cristalino o vilipêndio da proibição constitucional à criminalização do simples inadimplemento, bem assim do próprio princípio da não culpabilidade.
Além da apontada ausência do elemento subjetivo especial do injusto — fraude —, o ministro Gilmar Mendes consignou a necessidade da análise dos elementos normativos do tipo penal, sem os quais não há que se falar em crime. Depreendeu do ensinamento doutrinário que os termos “descontado” e “cobrado” não devem ser aplicados às hipóteses em que, por simples repercussão econômica, o comerciante repassa o seu ônus tributário no preço final da mercadoria ao consumidor.
Segundo o ministro, é certo que, em notas fiscais, destaca-se o valor do ICMS do valor das mercadorias e serviços. No entanto, esta indicação, para fins de controle e de aplicação sistemática da não cumulatividade, não significa que o ICMS deixa de integrar o preço de venda das mercadorias. Outros custos, diretos e indiretos, também compõem o preço de venda das mercadorias.
O ICMS não funciona como imposto retido. Não é recolhido automaticamente com a ocorrência da operação. É recebido pelo vendedor e integra o seu caixa, o seu patrimônio. O contribuinte irá repassar o valor ao estado apenas ao término do período de apuração, depois de considerada a compensação de créditos. O comerciante não é mero intermediário. Ademais, o contribuinte de direito não é obrigado a repassar o gravame econômico do ICMS ao consumidor, contribuinte de fato. Não se pode confundir dever jurídico tributário, que recai sobre o empresário contribuinte, com o mero ônus econômico que é suportado pelo adquirente.
O ministro avaliou inexistir apropriação de tributo devido por terceiro, pois é devido pela própria empresa. Observou que a apropriação indébita tributária está estritamente relacionada à substituição tributária, e não a impostos indiretos, em que o custo é repassado somente do ponto de vista econômico. O consumidor não é contribuinte do ICMS, no sentido técnico, nem sujeito passivo da obrigação. Inexistente relação jurídica tributária, não correto, juridicamente, compreender que o valor do ICMS embutido no preço tenha sido “cobrado” ou “descontado” do consumidor.
Dessa maneira, concluiu que os recorrentes foram denunciados por conduta atípica, o não recolhimento de ICMS devidamente declarado por comerciante ou empresário, embutido no preço por mera repercussão econômica ao consumidor. Ou seja, sem a devida descrição de situação fática que esteja no espectro de alcance do preceito normativo previsto no tipo penal do art. 2º, II, da Lei 8.137/1990.
O ministro Ricardo Lewandowski sublinhou estar em discussão a exata subsunção do fato à norma, não a constitucionalidade do dispositivo.
O ministro Marco Aurélio salientou que o contribuinte de direito não cobra do consumidor o tributo. O próprio contribuinte é obrigado a recolher o tributo na venda de mercadorias. A seu ver, deu-se interpretação elástica ao preceito.
Em seguida, o ministro Dias Toffoli pediu vista dos autos.
(1) Lei 8.137/1990: “Art. 2° Constitui crime da mesma natureza: (…) II – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;”
RHC 163334/SC, rel. Min. Roberto Barroso, julgamento em 11 e 12.12.2019. (RHC-163334)
Fonte: Informativo do STF nº 963.