O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei 8.137/1990 (1).
Com essa orientação, o Plenário, em conclusão de julgamento e por maioria, negou provimento a recurso ordinário em habeas corpus e revogou a liminar anteriormente concedida (Informativo 963).
Na situação dos autos, sócios e administradores de uma empresa declararam operações de venda ao Fisco, mas deixaram de recolher o ICMS (Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação) relativamente a diversos períodos. Por três vezes, a empresa aderiu a programas de parcelamentos da Fazenda estadual, mas não adimpliu as parcelas. Os ora recorrentes foram denunciados pela prática do delito previsto no art. 2º, II, da Lei 8.137/1990, que define crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, e dá outras providências. Na primeira instância, o juízo os absolveu sumariamente por considerar a conduta atípica. Em sede de apelação, o tribunal de justiça local afastou a tese da atipicidade e determinou o regular prosseguimento do processo.
Ato contínuo, a defesa impetrou habeas corpus perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ) (HC 399.109). Naquela Corte, a Terceira Seção, por maioria, asseverou ser inviável a absolvição sumária, notadamente quando a denúncia descreve fato que contém a necessária adequação típica e não há excludentes de ilicitude. Salientou que eventual dúvida quanto ao dolo de se apropriar deverá ser esclarecida com a instrução criminal.
Daí a interposição do presente recurso ordinário, no qual se requeria a declaração da ilegalidade do acórdão do tribunal de justiça, com o objetivo de restabelecer a sentença que os absolvia sumariamente.
Prevaleceu o voto do ministro Roberto Barroso (relator), que estabeleceu três premissas, reputadas importantes no equacionamento da matéria: (i) o Direito Penal deve ser sério, igualitário e moderado; (ii) o pagamento de tributos é dever fundamental de todo cidadão, na medida em que ocorra o fato gerador e ele exiba capacidade contributiva; e (iii) o mero inadimplemento tributário não deve ser tido como fato típico criminal, para que seja reconhecida a tipicidade de determinada conduta impende haver um nível de reprovabilidade especial que justifique o tratamento mais gravoso.
Explicitou que o sujeito ativo do crime é o sujeito passivo da obrigação, que, na hipótese do ICMS próprio, é o comerciante. O objeto do delito é o valor do tributo. No caso, a quantia transferida pelo consumidor ao comerciante. A utilização dos termos “descontado” e “cobrado” é o ponto central do dispositivo em apreço. Tributo descontado, não há dúvidas, refere-se aos tributos diretos. Já a expressão “cobrado” abarca o contribuinte nos tributos indiretos. Portanto, “cobrado” significa o tributo que é acrescido ao preço da mercadoria, pago pelo consumidor — contribuinte de fato — ao comerciante, que deve recolhê-lo ao Fisco. O consumidor paga mais caro para que o comerciante recolha o tributo à Fazenda estadual.
O ministro salientou que o valor do ICMS cobrado em cada operação não integra o patrimônio do comerciante, que é depositário desse ingresso de caixa. Entendimento coerente com o decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no RE 574.706 (Tema 69 da repercussão geral), oportunidade na qual assentado que o ICMS não integra o patrimônio do sujeito passivo e, consequentemente, não compõe a base de cálculo do PIS e da Cofins.
Dessa maneira, a conduta não equivale a mero inadimplemento tributário, e sim à apropriação indébita tributária. A censurabilidade está em tomar para si valor que não lhe pertence. Para caracterizar o tipo penal, a conduta é composta da cobrança do consumidor e do não recolhimento ao Fisco.
Segundo o relator, além da interpretação textual do preceito, a interpretação histórica também conduz à tipicidade da conduta. Na redação apresentada em substitutivo ao projeto de lei original, tratava-se, em incisos separados, a hipótese de retenção e não recolhimento e a hipótese de cobrança no preço e não recolhimento. No texto final aprovado, o dispositivo foi compactado sem a modificação do sentido da norma. Fundiu os dois incisos em um só e dispôs os termos “descontado”, para o tributo retido na fonte, e “cobrado”, para o incluído no preço.
De igual modo, a análise do direito comparado reforça essa compreensão. Em outras partes do mundo, os delitos tributários inclusive são punidos de forma mais severa. O relator lembrou que a Primeira Turma do STF concedeu pedido de extradição fundado em tipo penal análogo (Ext 1.139) e que o STF já reconheceu a constitucionalidade do tipo penal em debate (ARE 999.425, Tema 937 da repercussão geral).
Ao versar sobre a interpretação teleológica, o ministro Roberto Barroso observou que são financiados, com a arrecadação de tributos, direitos fundamentais, serviços públicos, consecução de objetivos da República. No País, o ICMS é o tributo mais sonegado e a principal fonte de receita própria dos Estados-membros da Federação. Logo, é inequívoco o impacto da falta de recolhimento intencional e reiterado do ICMS sobre o Erário. Considerar crime a apropriação indébita tributária produz impacto relevante sobre a arrecadação.
Também a livre iniciativa é afetada por essa conduta. Empresas que sistematicamente deixam de recolher o ICMS colocam-se em situação de vantagem competitiva em relação as que se comportam corretamente. No mercado de combustíveis, por exemplo, são capazes de alijar os concorrentes que cumprem suas obrigações.
O relator esclareceu que a oscilação da jurisprudência do STJ, ao afirmar a atipicidade da conduta adversada, fez com que diversos contribuintes passassem a declarar os valores devidos, sem recolhê-los. Houve uma “migração” do crime de sonegação para o de apropriação indébita e não é isso que o direito deseja estimular.
No tocante às consequências do reconhecimento da tipicidade sobre os níveis de encarceramento no País, aduziu que é virtualmente impossível alguém ser efetivamente preso pelo delito de apropriação indébita tributária. A pena cominada é baixa, portanto, são cabíveis transação penal, suspensão condicional do processo e, em caso de condenação, substituição da pena privativa de liberdade por medidas restritivas de direito. Além disso, é possível a extinção da punibilidade se o sonegador ou quem tenha se apropriado indevidamente do tributo quitar o que devido.
Assentada a possibilidade do delito em tese, o ministro assinalou que o crime de apropriação indébita tributária não comporta a modalidade culposa. É imprescindível a demonstração do dolo e não será todo devedor de ICMS que cometerá o delito. O inadimplente eventual distingue-se do devedor contumaz. O devedor contumaz faz da inadimplência tributária seu modus operandi.
Por fim, consignou que o dolo da apropriação deve ser apurado na instrução criminal, pelo juiz natural da causa, a partir de circunstâncias objetivas e factuais, tais como a inadimplência reiterada, a venda de produtos abaixo do preço de custo, a criação de obstáculos à fiscalização, a utilização de “laranjas”, a falta de tentativa de regularização de situação fiscal, o encerramento irregular de atividades com aberturas de outras empresas.
A ministra Rosa Weber acrescentou que a conduta eleita pelo legislador penal não exige, para sua perfectibilização, o emprego de fraude ou simulação pelo contribuinte, nem qualquer omissão.
Vencidos os ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, que deram provimento ao recurso, por considerarem a conduta atípica. Compreenderam estar-se diante de imputação criminal pelo mero inadimplemento de dívida fiscal. O ministro Gilmar Mendes salientou que uma interpretação constitucional do dispositivo deve levar em conta o animus de fraude do agente, sob pena de fomentar-se uma política criminal arrecadatória. Ademais, inexiste apropriação de tributo devido por terceiro, pois o tributo é devido pela própria empresa.
(1) Lei 8.137/1990: “Art. 2° Constitui crime da mesma natureza: (…) II – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;”
RHC 163334/SC, rel. Min. Roberto Barroso, julgamento em 18.12.2019. (RHC-163334)
Fonte: Informativo do STF nº 964.