A realização de acordo de transação penal não enseja a perda de objeto de habeas corpus anteriormente impetrado.
Com base nesse entendimento, a Segunda Turma concedeu a ordem de habeas corpus para determinar que o tribunal de justiça analise o mérito da impetração lá formulada.
No caso, de acordo com a inicial acusatória, o paciente foi denunciado pela prática de lesão corporal culposa, com pedido de reparação de danos, por ter agido de forma negligente e descumprido as regras técnicas de sua profissão.
Após o recebimento da denúncia, o Ministério Público ofereceu transação penal, medida aceita pelo paciente.
A defesa, no entanto, já havia impetrado habeas corpus no tribunal, apontando a inépcia da denúncia e a ausência de justa causa para a ação penal. Todavia, em razão da celebração do referido acordo, o habeas corpus foi julgado prejudicado.
No presente writ, a defesa alega que o habeas corpus impetrado na origem deveria ter sido conhecido, pois remanesce o interesse na apreciação das teses de inépcia da denúncia e de ausência de justa causa, mesmo tendo sido celebrado o acordo de transação penal.
A Turma afirmou que, em razão dos riscos e problemas inerentes ao sistema negocial, o controle realizado pelo julgador deve também abranger certa verificação sobre a legitimidade da persecução penal, visto que o Estado não pode autorizar a imposição de uma pena em situações ilegítimas, como, por exemplo, em quadros de manifesta atipicidade da conduta ou extinção da punibilidade do imputado.
Assim, não se pode permitir que o aceite à transação penal inviabilize o questionamento judicial à persecução penal. Ou seja, não se pode aceitar que um habeas corpus, que, entre outros requerimentos, aponta a atipicidade da conduta, seja declarado prejudicado em razão do aceite à barganha penal.
Ainda que os acordos penais pressuponham, corretamente, a voluntariedade do réu, ou seja, a sua vontade não coagida no sentido de aceitar a imposição da pena proposta, há relevantes críticas ao sistema de justiça negocial, em razão de possíveis abusos que viciam a voluntariedade do réu e podem ocasionar, inclusive, o aceite ao acordo por pessoas inocentes.
Assinalou que se potencializa o risco de um cenário de pressões e coerções, que pode ocasionar a fragilização da voluntariedade, o que, muitas vezes, não é devidamente analisado pelo Judiciário, se ausente um mecanismo de devido controle do acordo.
Embora o sistema penal negocial possa acarretar aprimoramentos positivos em certas hipóteses, a barganha no processo penal inevitavelmente gera riscos consideráveis aos direitos fundamentais do imputado e deve ser estruturada de modo limitado, para evitar a imposição de penas pelo Estado de forma ilegítima.
Nesse sentido, o controle judicial sobre o acordo é medida fundamental para a proteção efetiva de direitos fundamentais, de modo a se autorizar o exercício do poder punitivo estatal somente em casos legítimos para tanto. Deve-se, então, assentar a abrangência e os critérios para tal juízo de homologação da barganha penal.
Ainda que o réu se conforme com a acusação e aceite a imposição da pena com o benefício proposto, não se pode aceitar que o poder punitivo estatal seja exercido sem o devido controle judicial. Por isso, em todos os casos, tanto em colaboração premiada como em transação penal ou suspensão condicional do processo há a submissão para homologação judicial.
O controle judicial não pode ser meramente formal e mecânico, ao passo que a imposição de uma pena pelo Estado, ainda que consentida pelo imputado, deve ocorrer de modo legítimo e em conformidade com os direitos fundamentais previstos constitucional e convencionalmente.
Por óbvio, tal análise se dará de modo compatível com o momento em que ocorre e os limites cognitivos da fase preliminar da persecução penal. Ou seja, não se espera que o julgador busque fundamentar sua decisão em provas além de qualquer dúvida razoável, o que seria necessário para uma sentença condenatória ao final do processo regular.
Contudo, na homologação do acordo penal, como a transação penal, o julgador precisa realizar controle sobre a legitimidade da persecução penal, de modo que casos de manifesta atipicidade da conduta narrada, extinção da punibilidade do imputado ou evidente inviabilidade da denúncia por ausência de justa causa acarretem a não homologação da proposta.
Pela própria lógica da legislação atual, a transação penal somente pode ser oferecida se não for caso de arquivamento, ou seja, se houver potencial oferecimento de denúncia apta a ensejar o início do processo penal. Não se pode admitir que a transação penal possa impor obrigações a imputado que nem poderia ser submetido à persecução penal por ausência de justa causa ou atipicidade da conduta, por exemplo.
A celebração do acordo, por si só, não afasta o interesse do imputado no habeas corpus. Primeiramente, o descumprimento das cláusulas da transação penal permite o prosseguimento do processo. Além disso, a transação penal somente pode ser oferecida uma vez a cada cinco anos, de maneira a demonstrar interesse do paciente em sua desconstituição, por meio de eventual concessão da ordem para o trancamento do processo. Por fim, inexiste qualquer disposição legal que imponha a desistência a recursos ou ações em andamento, tampouco determine a renúncia ao direito de acesso à Justiça.
A Turma registrou que, conquanto a Lei 9.099/1995 determine seja a transação ofertada antes da denúncia, o que, em tese, significaria ausência de ação, neste caso concreto, a denúncia havia sido oferecida e recebida pelo Juízo de origem, de modo a ensejar pretensão legítima a buscar o trancamento do processo, ainda que se tenha anulado o ato precursor do processo.
Concluiu que, ainda que o cenário fosse diverso, o habeas corpus é meio legítimo para impugnar a imposição de pena pelo Estado, em casos de manifesta ilegalidade. O ato de homologação do acordo é momento em que o juiz de primeiro grau deve realizar o controle sobre a sua legalidade e a legitimidade da potencial persecução penal. Portanto, tal ato igualmente pode ser objeto de habeas corpus para o controle por tribunal superior.
O ministro Edson Fachin concedeu a ordem por outro fundamento. Pontuou que o habeas corpus anteriormente impetrado não pode ser implicitamente afetado por uma transação penal sem cláusula geral de renúncia.
HC 176785/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 17.12.2019. (HC-176785)
Fonte: Informativo do STF nº 964.